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Qual é a cor da ansiedade? A superação do medo e a tropa dos Lanternas Verdes – o caso de Jéssica Cr

O Universo que envolve os personagens da tropa dos Lanternas Verdes se tornou, dentro da DC Comics, um Universo à parte. Tendo ganhado importância ao longo da era de prata, pouco depois da primeira reformulação da casa das lendas, os Lanternas sempre foram bastiões de alguns temas interessantes. O fato de serem uma tropa policial intergaláctica, da posição dos membros da Terra, da maneira como os conflitos com os guardiões, seus criadores, repercutem em cada portador do anel e, mais importante, a maneira como a superação do medo ocupa um lugar central nisso tudo, tornam a discussão sobre os desdobramentos da Tropa uma discussão fantástica.


O que seria, portanto, superar o medo? O que significa um personagem, criado em contextos específicos, superar o seu medo? Desde a primeira sucessão do Lanterna do Setor 2814, quando Guy Gardner foi escolhido para substituir Hal Jordan, a superação do medo sempre teve uma conotação militar. Mas isso muda quando, depois do Crepúsculo Esmeralda, Kyle Rayner se torna Lanterna Verde em caráter emergencial. Não superando o medo como seus antecessores, o artista freelancer tornou-se Lanterna pela sua sensibilidade e capacidade de perceber o medo, de sentir sua presença vindoura. E essa deixa abre espaço para outras formas de compreensão do significado possível para os Lanternas Verdes; um desdobramento da lenda.


Green Lantern #48 (1994)

Gren ntern Rebirth #1 (2004)

Kyle Rayner, portanto, abre um espaço muito interessante para pensarmos a superação do medo dentro dos Lanternas Verdes. Tentarei refletir sobre o lugar do medo nos cavaleiros esmeralda e, a partir disso, enfatizar a importância de Jessica Cruz como uma figura que precisa constantemente superar os seus medos. Ela tem crises de ansiedade e síndrome do pânico. Esses fatos já intensificam a complexidade da personagem que ganhou o anel em meio à saga da Vilania Eterna. Muito além do entretenimento aventuresco, ela luta cotidianamente para fazer coisas simples, desde sair da cama até abrir a porta do seu quarto. Nenhum desafio é grande o suficiente quanto abrir os olhos e enfrentar um outro dia. O exemplo da personagem nos ajuda a pensar como, mesmo sendo produto de uma indústria enorme e ramificada, os quadrinhos podem trazer questões contemporâneas que são muito relevantes. Mas antes de chegar em Jessica Cruz, precisamos explorar um pouco as metáforas presentes na tropa dos Lanternas Verdes.


In brightest day... in blackest night...

Estamos nos anos de 1970 em meio aos desdobramentos das lutas pelos direitos civis nos EUA. Toda a indústria cultural nas terras ao Norte do continente está balançada com esses acontecimentos. Além disso, estamos nos anos de recapitulação e reconfiguração do Comics Code Authority para os assuntos que poderiam ser tratados nos quadrinhos. Em meio a esse caldo cultural, Neal Adams e Dennis O'Neil têm uma função um tanto quanto desafiadora: tornar relevante o personagem Lanterna Verde tirando-o de um conceito genérico adquirido pós-era de ouro. Para tanto, os dois revitalizaram um outro personagem, o Arqueiro Verde, para que isso pudesse acontecer. Como já foi dito aqui no blog, é nesse período que Oliver Queen ganha conotações progressistas, sendo relacionado aos debates da esquerda institucional estadunidense. Assim, a dinâmica dos personagens foi pensada a partir disso, um era um agente da ordem e o outro, o seu questionamento.


Já no número de abertura nos deparamos com uma patrulha de Hal Jordan, o Lanterna Verde, em um subúrbio de Star City, lar original de Oliver Queen. Ele começa refletindo sobre seus anos como portador do anel energético e, pouco depois, percebe uma confusão em um bairro residencial próximo do local. Lá, observa dois jovens empurrarem um senhor para o meio-fio da calçada. Imediatamente o herói esmeralda age para conter os rapazes e ajudar o senhor que estava no chão. Pouco depois do acontecido, depois de conversar um pouco com esse mesmo senhor, as pessoas do entorno começam a jogar latinhas e objetos em Hal Jordan e ele fica sem entender. O problema é que o senhor em questão estava executando uma ordem de despejo no bairro para a construção de prédios de estacionamentos. Oliver Queen, que estava acompanhando de perto as ações dos rapazes e, consequentemente, o Lanterna Verde, explica, em tom de bronca, toda a situação e critica a abordagem do vigilante intergaláctico. Mas o ponto alto dessa primeira página é o monólogo de um senhor negro direcionado ao Lanterna. Algo mais ou menos assim: “Eu li sobre você… como você trabalha para os de pele azul… como, em um planeta em algum lugar, você salvou os de pele laranja… e você fez coisas consideráveis para os de pele roxa. Dentre essas peles, o que você fez para os de pele negra? Eu gostaria de saber, senhor Lanterna Verde”. Consternado e de cabeça baixa, Hal Jordan não consegue falar.


Green Lantern And Green Arrow (2014)

Os eventos retratados, a bronca de Oliver Queen e os questionamentos do senhor que colocou o vigilante esmeralda contra a parede, deflagram acontecimentos que, a meu ver, servirão como base para a questão do medo que quero trabalhar. Hal Jordan começa a pensar seus atos, começa a questionar sua relação primordial com a ordem. Quando ele vai tomar satisfação com o senhor que queria construir o estacionamento, é repreendido pelos guardiões do Universo com o argumento de que isso não seria função de um Lanterna Verde. Nesse ponto, inaugura-se a tensa relação entre os guardiões do Universo, racionais e científicos, e seus Lanternas, passionais e feitos de superação. A coisa mais interessante, para mim, é como essa tensão vai se tornando constitutiva do ideário dos Lanternas Verdes e dos portadores dos anéis energéticos. A centralidade das ações dos lanternas, portanto, passam ao primeiro plano dos temas dos roteiros e são o fundamento das transformações vindouras no Universo Esmeralda. Mas isso é uma outra história…


Green Lantern And Green Arrow (2014)

Beware my power... Green Lantern’s light!

Avançando no tempo e nas edições, deixando as idas e vindas do Universo ao redor da Tropa dos Lanternas Verdes, chegamos ao evento que transformará Jessica Cruz em Lanterna Verde. A cena mostra o anel criado por Anel Energético – a versão maligna do Lanterna Verde da Terra 3 – na frente da moça enquanto ela estava em uma crise de pânico. Ela se desespera ao ver o artefato brilhando e se comunicando, falando seu nome e solicitando seu aceite para substituir o membro do Sindicato do Crime. Ao invés de procurar uma pessoa que possua a habilidade superar um grande medo, o anel procurou uma pessoa que tivesse muito medo, ou um medo enorme. Logo, Cruz foi a primeira encontrada. Seu medo, sua ansiedade, a impediu de conviver com a irmã, com o resto de seus amigos e com as demais pessoas. Ela havia se trancado no seu apartamento por, pelo menos, três anos.


Mas os problemas da futura integrante da tropa esmeralda começaram bem antes, no momento em que presenciou o assassinato de seus amigos por um grupo de criminosos. Em termos de publicação, essas informações só aparecem depois, mas o que importa para o argumento que estou tentando desenvolver é que, além de um medo grande e constante, Cruz tem uma raiva de igual tamanho e é essa a deixa para o anel maligno ir atrás da moça. Medo e raiva são uma constante para Jessica Cruz e sua maior inimiga, a ansiedade.


Justice League #30 (2014)

Justice League #30 (2014)

Em Green Lanterns #15 (Março, 2017), somos apresentados à profundidade do transtorno de ansiedade de Jessica Cruz, além de alguns desdobramentos de sua síndrome do pânico. O roteirista regular da série, Sam Humphries, explora esse lado da guerreira esmeralda para ligá-la às batalhas contra o medo. O trio da arte, Tom Derenick, Miguel Mendonça e Scott Hanna, faz boas escolhas para transformar em narrativa gráfica as questões centrais do roteiro. O número já começa com Cruz e seu dilema diário de sair da cama. O quarto bagunçado, as coisas pelo chão e o celular chamando. A Lanterna Verde da Ansiedade, como ela mesma se chama, tem uma luta diária para sair da cama e viver o seu dia. As páginas seguintes mostram a continuação dessa reflexão; o diálogo sempre procurando uma justificativa para ela continuar e uma “contrajustificativa” para que ela fique na cama, dessa vez com Simon Baz, outro Lanterna verde que, por si só, daria uma ótima reflexão. Vale notar que o mote desse segundo diálogo interno é ela procurando uma resposta para a pergunta: qual é a cor da ansiedade?


As próximas páginas são ela trabalhando com a Liga da Justiça, enfrentando várias ameaças e questionando sua posição na Liga e seu lugar como heroína. Pouco depois, ao lançar seus primeiros constructos com mais consistência, salva várias pessoas e consegue ajudar efetivamente o grupo de heróis e heroínas. Mas a grande sacada da revista, a grande virada do roteiro vem logo depois disso. Depois de realizar alguns trabalhos, a dupla de Lanternas, Cruz e Baz, vai resolver um problema de assalto a banco com reféns, com um vilão tipicamente dos anos 1960, um xerife com tapa-olho chamado de O Jogador. Ela começa se perguntando o motivo pela qual uma pessoa se vestiria daquela forma tão ridícula, tão idiota, depois centra nos detalhes da situação, das vestimentas… a crise de ansiedade começa. Ela se sente paralisada, é salva por Baz e, depois que o parceiro tenta “compreender” sua situação, os dois discutem e ela vai embora. Daí para frente a narrativa se centra em Cruz tentando retomar seu cotidiano, as mais pequenas atividades, o controle das situações e da sua mente. O ponto alto da revista é, depois, quando os primeiros quadros voltam, quando Cruz está deitada na cama, lutando para se levantar e Baz, pelo anel energético, está chamando-a. A página seguinte, desenhada em espiral, é ela levantando todas as suas dúvidas, todas as suas incertezas, sentindo o medo de frente. Um misto de terror e coragem que só quem tem ansiedade é que vai entender. Ela consegue se levantar e encontra Baz para conversar. A conclusão da crise é essa.


Lanternas Verdes #8 (Panini comics, 2017)

Jessica Cruz supera o medo todos os dias. Sua ansiedade é sua principal vilã. O mote para que ela se tornasse Lanterna Verde é sua batalha cotidiana pelas coisas simples, por conseguir viver cada dia de uma vez. O gancho da metáfora do medo, aberto anos atrás, ganha em Cruz o seu elemento mais importante. A meu ver, é essa a maneira de os quadrinhos ainda fazerem sentido, mostrarem possibilidades no impossível, realidade no fantástico. Sem serem normativos e caricatos. E como eu sou desses que fazem listas de coisas preferidas, posso fazer uma de preferência das pessoas que portam o anel esmeralda: Kyle Rayner, Simon Baz e Jessica Cruz.


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