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"Paper Girls" e a nostalgia não celebratória dos anos 1980

Uma obsessão por certo tipo de narrativa, em geral associado – nos seus temas e formatos – aos anos 1980, parece ter fisgado a cultura pop em tempos recentes. Stranger Things (Matt Duffer e Ross Duffer, 2016-2017) é só o exemplo mais notório desse filão, no qual se enquadra também o filme Super 8 (J. J. Abrams, 2011) e a nova adaptação cinematográfica do livro “It” (1986), de Stephen King (It, Andy Muschietti, 2017). Nessas histórias, um grupo de crianças ou adolescentes de cidades pequenas dos Estados Unidos se depara com fenômenos atípicos e/ou sobrenaturais, os quais precisa enfrentar a despeito da desconfiança dos adultos e das “complicações” associadas a essa época da vida. Uma clara nostalgia pela cultura pop dos anos 1980 perpassa essas narrativas, que recheiam suas tramas com referências a filmes, desenhos animados, HQs e videogames da época.


Vou cometer a temeridade de aproximar Paper Girls (2016), história em quadrinhos escrita por Brian K. Vaughan, desenhada por Cliff Chiang e colorida por Matt Wilson, desse padrão narrativo recente – apenas para distanciá-la, logo em seguida.


A revista foi lançada nos EUA pela editora Image, em 2016, e teve seu primeiro volume no Brasil publicado este ano, pela Devir. A história se passa logo após o Dia das Bruxas de 1988, quando conhecemos quatro garotas de 12 de idade – Erin, MacKenzie, KJ e Tiffany – que entregam jornais durante a madrugada. Geralmente um trabalho realizado por rapazes (conforme a expressão comum “paper boys”, e daí o título da série), a entrega de jornais para essas meninas envolve o confronto com homens hostis, policiais autoritários e ladrões, até que fenômenos estranhos começam a acontecer na cidadezinha onde moram – como o surgimento de maquinários supostamente alienígenas, pessoas de aparência deformada que falam um idioma incompreensível, e portais no céu dos quais emergem homens e mulheres de armadura montados numa espécie de dinossauros voadores. Colhidas no meio da confusão, as garotas se deparam com o que parece um conflito entre grupos geracionais distintos que envolve o desaparecimento de adultos e adolescentes e, além de tudo, viagens no tempo.


A vaga descrição acima não é despropositada. O roteiro de Vaughan nutre uma desorientação oriunda dos mistérios que assolam a cidade, e que reflete na verdade o próprio sentimento do quarteto de protagonistas. Nossa confusão e anseio por entendimento são os mesmos que os delas, apesar de termos acesso, algumas vezes, a um ponto de vista privilegiado acerca dos antagonistas em jogo. E é esse recurso narrativo que termina por garantir o funcionamento de um tipo de projeção muito característico desse padrão de história infanto-juvenil: como reagiríamos se fizéssemos parte do grupo de protagonistas? Se o mundo “real”, cotidiano, tão habilmente construído na fluidez dos diálogos e nas ações relativamente verossímeis dos personagens, fosse assolado por fenômenos que desafiam nossa capacidade de compreensão imediata? Sempre me pareceu que ao menos parte do sucesso desse tipo de narrativa repousava na sua habilidade em nos fazer sentir parte do grupo, e Paper Girls não é exceção.


Tanto quanto os diálogos e os percalços da trama, os desenhos e as cores nos situam com alguma delicadeza nessa relação entre mundo “banal” e mundo “fantástico”, que ora aparece como dicotomia, ora como sobreposição. O traço e a coloração suaves, realistas até certo ponto, que Chiang e Wilson empregam nos personagens e nos cenários da cidadezinha de Stony Stream, contrastam com os desenhos e as cores chapadas, praticamente sem sombras, que marcam os elementos sobrenaturais e bizarros da história, os quais rememoram um visual de ficção científica oitentista de baixo orçamento. E nesse jogo dual constroem a perturbação fantástica de um mundo aparentemente normal, para nós e para as protagonistas da história.

Poderia haver, até aqui, pouca novidade em Paper Girls, a despeito de seus excelentes roteiro e desenhos. Pois, à primeira vista, ela cultiva a mesma nostalgia da cultura pop dos anos 1980 que fez a fama de Stranger Things. Para além da própria estruturação da trama que acabei de mencionar, estão lá o cartaz de filme adolescente (“The Monster Squad”, Fred Dekker, 1987), a fantasia de ícones do cinema de terror, as referências a programas de televisão, tecnologias como walkie-talkies e certos jogos de videogame (e as páginas da personagem Tiffany jogando Arkanoid no Nintendo, um dos pontos altos do volume para mim, são tanto um comentário mordaz da época quanto a expressão de um carinho profundo por ela). Assim como na série da Netflix, todas essas referências estão conveniente e acertadamente situadas de modo a despertar essa sensação saudosa e amorosa por uma época talvez mais inocente e divertida….


Acontece que Paper Girls, ao contrário dos outros exemplos de narrativas recentes mencionados antes, parece reconhecer alguns limites importantes do ato de rememorar, de forma puramente celebratória, a cultura pop dos anos 80. A despeito da HQ se embebedar na diversão e no carinho que essa cultura é capaz de proporcionar, e de fazê-lo, a meu ver, com mais qualidade do que outras obras contemporâneas – a série dá mostras de uma autoconsciência dos valores da época e seus problemas, e de que estes não podem ser simplesmente trazidos para o presente sem uma mediação narrativa que os reconheça enquanto tais e busque supera-los.


Isso é evidente, num nível mais superficial, já na própria formação do grupo de protagonistas. São todas garotas, quando esse tipo de narrativa é, primordialmente, focado em homens, e em que as mulheres tendem a ser encaixadas nos papéis tradicionais de vítima ou interesse romântico. Trata-se de um padrão de representação que perpassa toda essa recente onda nostálgica, que permanece, aparentemente, completamente alheia às discussões atuais sobre a questão.


Não é incomum, também, que tais histórias reproduzam ainda um conjunto de valores sociais preconceituosos, disseminados numa época em que sua crítica pública ainda lutava para se disseminar e institucionalizar. Atos discriminatórios e ideias preconceituosas – com relação a raça, gênero ou orientação sexual – que poderiam, talvez, passar despercebidos nos anos 1980, não têm como reaparecer nas narrativas contemporâneas sem que provoquem uma sensação de dissintonia, de não concatenação com um ideário de sociedade e de cultura mais igualitários e justos.


De forma pouco usual, Brian K. Vaughan parece reconhecer, em Paper Girls, tais limites nas narrativas de que tanto gosta, os quais acaba corporificando, em sua maioria, na personagem MacKenzie. Complexa, como todas as outras, ela é de um lado uma espécie de pioneira – Erin assim se refere a Mac, logo após conhecê-la: “Você foi a primeira. A primeira entregadora por aqui que não era um… você sabe”. E, por outro lado, ela é invariavelmente o canal de expressão de comentários preconceitos. Ao resgatar Erin de um atacante, sua ofensa verbal envolve chamá-lo de “viadinho” e “aidético”, no que é posteriormente retrucada pela própria Erin: “Você não devia xingar ninguém assim. E qualquer um pode pegar AIDS, não apenas os gays”. O questionamento, que ressoa certamente com nossas sensibilidades contemporâneas, a meu ver demonstra um distanciamento com relação a valores da época ausente em outras produções do gênero, que tendem ou a omiti-los ou reproduzi-los simplesmente. Em outra ocasião, quando Mac se refere a um garoto gay como “pervertido”, KJ diz que ela se parece com seu “tio racista”, um epíteto-chave que acena para essa conscientização cultural pouco frequente. O próprio rapaz – um viajante do tempo vindo do futuro – sintetiza essa autopercepção da HQ, respondendo à provocação de Mac: “Vocês são de uma época ferrada”.


Evidentemente que não se trata aqui de um julgamento moral absoluto de toda uma época, nem de negar a riqueza das suas expressões culturais para os dias de hoje. Mas é preciso reconhecer que as suas contradições (dos seus valores e narrativas) tendem a ser silenciadas na onda nostálgica atual, aparentemente pouco preocupada se, com isso, reproduz e reforça os já sérios problemas de representação e estereotipia na cultura pop. Paper Girls sinaliza para a possibilidade de um olhar nostálgico não puramente celebratório e, com isso, mais fértil para a compreensão do nosso passado e, sobretudo, do presente.


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