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Dilemas da metáfora mutante nas histórias dos X-Men - Início: Diferença e integração nos X-Men de St

O ano era 2013. No universo ficcional da Marvel, as relações entre mutantes e (super-)humanos, que nunca foram muito amistosas, estavam ainda mais abaladas após um recente conflito entre os X-Men e os Vingadores. Para remediar a situação – “para unir estes dois polos”, conforme suas próprias palavras –, o Capitão América formou uma equipe composta por membros dos dois grupos, convenientemente chamada “unidade de integração dos Vingadores”. Na coletiva de imprensa que apresentou a equipe ao público, seu líder, o mutante Alex Summers – codinome Destrutor, irmão de Ciclope, dos X-Men – profere as seguintes palavras:

Não me vejo como tendo nascido numa seita ou religião mutante. Ter um gene-x não me liga a ninguém. Não me define. Na verdade, considero o termo “mutante” segregacionista. Um pensamento velho que serve apenas para nos separar ainda mais do próximo. Todos nós somos humanos. Uma só tribo. Somos definidos por nossas escolhas, não pela conformação dos nossos genes. Então, por favor, não nos chamem de mutantes. A palavra com "m" representa tudo que eu odeio.

Uncanny Avengers n. 5 (maio de 2013), texto de Rick Remender e desenhos de Olivier Coipel (fonte)



O impacto desse discurso se fez sentir quase imediatamente, tanto fora* quanto no interior do Universo Marvel. Neste último, a também mutante Kitty Pryde – cujo poder consiste em intangibilidade, lhe conferindo a capacidade de atravessar objetos sólidos –, então liderando uma equipe de X-Men mais jovens**, é questionada por seus alunos, após ouvirem o discurso de Alex Summers, se a palavra “mutante” é ruim, pejorativa. Ela então responde:


Eu sou judia. Meu nome não soa “judeu”. Não pareço nem tenho sotaque judeu... ou coisa parecida. Então, se vocês não soubessem que sou judia, só descobririam se eu contasse. O mesmo vale pra minha mutação. Não preciso usar visores nem estou coberta por pelos azuis. Posso andar por aí à vontade como uma moça qualquer.


Mas... sou diferente. Aos treze anos, antes da minha mutação se manifestar... eu me apaixonei por um menino da escola. Loucamente. Eu seguia o garoto como um cachorrinho porque era uma babaca aos treze anos... Um dia, ele viu um rabino do outro lado da rua e fez o pior comentário antissemita que já ouvi. Nem vou repetir. Falou essa coisa terrível e caiu na gargalhada. Riu sem parar. Daí, meu coração... se partiu e meu sangue ferveu. Ferveu mesmo. Eu me virei pra ele e gritei: eu sou judia! E o garoto me olhou... como se não percebesse que tinha falado alguma coisa errada. Ou não soube interpretar o que falei. Mas, depois de ir pra casa e chorar até acabarem as lágrimas... pela primeira vez na vida, percebi que tinha orgulho de mim mesma.


Eu sou judia. E sou mutante. E quero muito que as pessoas saibam. Eu conto pros outros porque, se vamos ter algum problema por causa disso... eu prefiro saber.

All-New X-Men nº. 13 (agosto 2013), texto de Brian Bendis e desenhos de Stuart Immonen (fonte)

“Mutantes” aqui, não custa lembrar, são pessoas nascidas com mutações genéticas que lhes conferem “habilidades extraordinárias” (ou seja, superpoderes), usualmente consideradas a próxima etapa na evolução humana. E que, por tudo isso, são temidas, odiadas e perseguidas pelas pessoas “comuns”. Não à toa, “mutantes” geralmente são interpretados como uma representação metafórica, no universo ficcional de super-heróis da Marvel, de grupos sociais historicamente discriminados, como mulheres, negras e negros, queers, “minorias” étnicas... Os X-Men, nessa leitura muito comum, são vistos, mais até do que como super-heróis, como uma equipe que luta pelos direitos dessas pessoas, pela sua inclusão e aceitação na sociedade mais ampla. Ou, conforme a descrição mais comum, pela “coexistência pacífica entre humanos e mutantes”.


O que os dois discursos reproduzidos acima mostram, no entanto, é que a simplicidade aparente dessa metáfora esconde possibilidades múltiplas e contrastantes de se encarar a luta em prol de grupos historicamente discriminados e oprimidos. Alex Summers e Kitty Pryde, no nosso exemplo, estão em polos praticamente opostos no que diz respeito à concepção sobre qual o papel e o lugar dos mutantes (negras e negros, mulheres, LGBT...) na sociedade, e como eles e elas devem desenvolver sua militância em prol de direitos, respeito, inclusão. A “coexistência pacífica” pode então ser entendida de múltiplas formas, e apresentar diferentes implicações. O que me leva quase imediatamente às perguntas: como essa noção de mutantes enquanto metáfora é desenvolvida nas histórias dos X-Men, e como isso interfere na própria concepção das finalidades e ações da equipe?


Evidentemente, pretender uma resposta unívoca a essa questão seria inconsequente, já que os X-Men foram criados em 1963, e de lá até hoje passaram pelas mãos de muitos autores e autoras (estas consideravelmente menos), com perspectivas políticas distintas no que diz respeito a essa metáfora fundamental e a sua importância para as histórias do grupo. Na verdade, é da própria multiplicidade de visões acerca dela que parte a nossa discussão aqui.


Começando com este texto, irei tentar explorar os dilemas e as transformações, ao longo dos anos, dos mutantes como metáfora nas histórias dos X-Men. Ou, como chamarei daqui em diante, da “metáfora mutante”. É claro que uma parte desse ímpeto vem da minha curiosidade e do meu carinho pelo grupo, pela vontade de reler histórias de autores como Chris Claremont, Grant Morrison, Joss Whedon, Brian Michael Bendis e tantos outros. Mas também vem da impressão inicial de que esse elemento metafórico nem sempre é predominante nas histórias ou, quando o é, muitas vezes está distante da ideia de afirmação da diferença geralmente associada, contemporaneamente, aos X-Men.


Não é minha intenção fazer uma análise em profundidade das revistas do grupo, mas apenas observar – nas tramas, nas falas, nos personagens – as formas de compreender a metáfora mutante e as suas implicações. De todo modo, acredito que a jornada vai ser interessante. E como estamos falando de mais de 50 anos de histórias, obviamente não pretendo contemplar tudo neste primeiro texto, nem necessariamente em textos sucessivos e que sigam a ordem cronológica das histórias. Mas comecemos, sim, do início, com as histórias produzidas pelos seus criadores, Stan Lee e Jack Kirby, entre os anos de 1963 e 1966.

Os X-Men de Stan Lee e Jack Kirby (1963-1966)

Estranhos, odiados e perseguidos... mas nem tanto

Capa de X-Men nº. 1 (setembro de 1963), desenhos de Jack Kirby (fonte)

Na verdade, as falas com que inicio o texto não são fortuitas. Elas expressam, a meu ver, os dois principais padrões discursivos com que a metáfora mutante foi (e talvez continue sendo) trabalhada nas histórias dos X-Men. Existe provavelmente um terceiro padrão, surgido mais recentemente, e que associa os mutantes a uma “espécie em perigo de extinção” – mas deixaremos para discutir a relação dele com os demais em um momento posterior, quando abordarmos as histórias publicadas a partir de 2005, especificamente após a saga “Dinastia M”.


Por ora, voltemos ao discurso de Destrutor. Nele, vemos a defesa de uma aceitação dos mutantes baseada naquilo que os aproxima – e, no limite, indiferencia – dos humanos. Eles não seriam (ou não deveriam ser vistos como) a “próxima etapa da evolução humana”, conforme a descrição mais comum, mas apenas como “humanos”. A ideia da diferença, aqui, aparece sob um prisma negativo – afinal, o próprio termo mutante é “segregacionista” e “ter um gene-x” não necessariamente liga as pessoas (não existe “seita ou religião mutante”). No limite, poderíamos extrapolar as palavras de Alex, a diferença – aquilo que torna os mutantes um grupo específico e provoca o ódio e o temor das pessoas (ou seja, precisamente aquilo que os une) – precisa ser negada ou suprimida para que a integração, a coexistência pacífica tão sonhada pelo professor Charles Xavier ao fundar os X-Men, aconteça. Para que mutantes e humanos sejam vistos como “uma só tribo”.


Na minha aposta de leitura, é essa forma de compreender a metáfora mutante que subjaz às primeiras histórias dos X-Men, lá nos anos 1960.


E provavelmente nem poderia ser diferente. Afinal, ultrapassar a linguagem humanitária genérica (“somos todos um”) em que essa perspectiva é formulada implicaria tomar uma posição ideológica mais explícita nos conflitos políticos que começavam a atravessar a sociedade estadunidense nos anos 1960, especialmente no que diz respeito às desigualdades raciais. Esse passo, aparentemente, o escritor do grupo, Stan Lee, ainda não estava preparado para dar. A relação entre posições políticas e os quadrinhos de super-heróis da editora, na época, era sempre ponderada considerando-se a necessidade de sucesso comercial – e, portanto, de alcançar vastos e diferentes públicos – das revistas.


Essa parece, inclusive, ser uma perspectiva pessoal do próprio Stan Lee, se estiver correta a imagem construída por Sean Howe em “Marvel Comics: A história secreta” (Editora Leya, 2013). Segundo Howe, Lee era certamente alguém “progressista”, “centro-esquerdista”, capaz de construir “sermões vagamente judaico-cristãos e humanitários”, e que “ficava feliz em pregar tolerância” – mas que, ao mesmo tempo, “não ia ser visto assumindo uma postura impopular”. Stan Lee, de acordo com o autor, passara “anos como mestre do meio-termo, no ofício de criar histórias tão ambíguas nas entrelinhas políticas, que a Marvel era aceita tanto pela extrema-esquerda quanto pela extrema-direita”.


Essa ambiguidade, me parece, é perceptível nas primeiras histórias dos X-Men, em que podemos flagrar a metáfora mutante sendo construída de modo progressivo (e, às vezes, contraditório) ao longo das edições. Ao menos da forma como concebidos por Lee e Kirby, os X-Men são uma equipe formada pelo professor Charles Xavier, um poderoso telepata que recruta outros mutantes como ele, para treina-los em sua escola particular no uso responsável de seus poderes. A equipe formada por ele é composta de cinco adolescentes: Ciclope, capaz de projetar rajadas de energia pelos olhos, sobre as quais não tem controle; Fera, dotado de agilidade sobre-humana e, ao menos em tese, de um tipo físico próximo ao seu codinome; Homem de Gelo, de poderes idênticos ao que o nome sugere; Anjo, adolescente milionário que possui asas; e Garota Marvel (Jean Grey), a única mulher do grupo e capaz de mover objetos com a sua mente.


Na primeira edição acompanhamos a chegada de Jean Grey à equipe e o confronto inaugural com aquele que se tornaria o arquinimigo do grupo, Magneto. Nas edições seguintes, os X-Men enfrentam diversos inimigos, mutantes ou não, num padrão narrativo em nada diferente das outras histórias de super-heróis da época, em que o conflito é sempre solucionado ao final, com a derrota ou fuga do vilão. Nas histórias produzidas por Lee e Kirby (este desenhou até o número 11, construindo layouts para as edições 12 a 19, e aquele escreveu até o número 19), os princípios de atuação do grupo, e as personalidades de seus integrantes, vão sendo elaborados aos poucos, estando todos ainda distantes das versões que se tornariam mais conhecidas nos anos seguintes. Um dado curioso, sempre mencionado quando se aborda esse período na história dos X-Men, é que a revista do grupo não era um sucesso comercial, chegando a parar de publicar histórias inéditas em 1970 (edição 66). Nos anos seguintes, seriam apenas republicadas histórias antigas, até o grupo ser reformulado em 1974 e então começar o caminho que o levaria ao sucesso de hoje.


Certamente está presente, desde a primeira edição, a ideia de que mutantes são vítimas de discriminação. Ao contar sua própria história para Jean Grey, o professor Xavier relata que, quando jovem, depois que seus poderes se manifestaram, as pessoas comuns (normal people) o temiam e desconfiavam dele. Tendo percebido, então, que “a raça humana não estava ainda preparada para aceitar aqueles com poderes extras”, segundo suas palavras. Essa teria sido sua motivação para a criação dos X-Men e, particularmente, da escola: criar um “santuário”, um refúgio, um lugar onde os mutantes poderiam treinar seus poderes para o benefício da humanidade – “para ajudar aqueles que desconfiariam dos mutantes se soubessem da sua existência”, mais uma vez conforme suas próprias palavras.

X-Men nº 1 (setembro de 1963), texto de Stan Lee e desenhos de Jack Kirby (fonte)

Mas não vemos sinal algum desse temor e dessa desconfiança durante muito tempo, exceto na fala dos personagens. Arrisco dizer que é apenas na edição nº 8 (novembro de 1964) que temos um primeiro vislumbre do ódio aos mutantes. Nesta história, o Fera, após salvar um garotinho preso no topo de um edifício, é perseguido por uma multidão descontrolada, temerosa ao observar seus incríveis feitos sobre-humanos (como escalar o prédio apoiando-se apenas nos pés). “Ouvi dizer que há muitos mutantes se escondendo... esperando para dominar o mundo”, um anônimo afirma. “Ele provavelmente salvou aquela criança para baixar nossa guarda... e nos fazer pensar que mutantes não são perigosos”, afirma outro. “Mas ele não pode nos enganar. Venham! Vamos pegá-lo!”.


Aqui temos o primeiro vislumbre desse preconceito desmedido aos mutantes que se tornará central nas histórias futuras dos X-Men. E também a primeira pista das potencialidades da metáfora que estamos discutindo. Pois é o ato de converter o outro, o diferente, em “inimigo”, que subjaz à ação raivosa da multidão. Uma leitura depreciadora da alteridade que persiste mesmo em presença de atitudes que, não fosse o perpetrador quem é, seriam louváveis – lembremos que o Fera havia acabado de desempenhar um ato de heroísmo, mas sua condição de mutante nega-lhe o reconhecimento que seria devido, nas mesmas circunstâncias, aos integrantes dos Vingadores, por exemplo. Não à toa, o Fera resigna dos X-Men, cansado de arriscar sua vida em prol dos humanos que “nos temem, odeiam e querem nos destruir” (decisão que não duraria muito tempo).


Mas situações como essa só se tornarão mais frequentes, nas histórias, tempos depois, e ainda assim de modo intermitente. Antes disso, o que temos são integrantes dos X-Men sendo tratados como celebridades ou como super-heróis quaisquer, a quem as pessoas agradecem depois de uma benfeitoria – como por exemplo, Anjo, Ciclope e Homem de Gelo sendo assediados na edição 2 (novembro de 1963).


É claro que, no que diz respeito às potencialidades dos mutantes como metáfora para grupos sociais historicamente discriminados, a própria composição dos X-Men é significativa dos seus limites. Se a equipe, no seu início, conforme afirma Sean Howe, por sua conexão com a luta pelos direitos civis, “foi uma das primeiras vezes em que a Marvel reconheceu as fissuras na sociedade americana” – é difícil perceber onde se localiza essa fissura quando estamos tratando de um grupo integralmente formado por pessoas brancas (a primeira integrante negra do grupo, Tempestade, só surgiria em 1974), apenas uma mulher, dois homens milionários e praticamente todos capazes de esconder os traços que os identificam como mutantes.


Não que esses padrões narrativos sejam exclusivos aos X-Men, pois são partilhados por praticamente todo o gênero de super-heróis, nessa época e além. Mas, nas histórias do grupo, que carregam a tentativa, ou a menos a proposta, de atuar no sentido metafórico que estamos abordando, essa é uma limitação intransponível da qual apenas com muito esforço conseguirão sair (se é que conseguiram, mesmo hoje). E isso a despeito de serem chamados de “os mais estranhos super-heróis de todos”, conforme chamada de capa das primeiras edições.

X-Men nº 5 (maio de 1964), texto de Stan Lee e desenhos de Jack Kirby (fonte)

Integração e negação da diferença

Mas, afinal, qual o papel dos X-Men no universo ficcional da Marvel? Ou seja, para que o professor Charles Xavier reuniu aqueles jovens mutantes e decidiu treiná-los no uso dos seus poderes? É na consideração desse ponto que, acredito, podemos fisgar o sentido mais preciso da metáfora mutante nesses primeiros anos da história do grupo.


É logo na primeira edição que Xavier explica a razão de ser do grupo. Os X-Men existem para mostrar aos humanos que é possível confiar nos mutantes, que os seus temores são infundados. Que existem sim mutantes “malignos”, que querem governar o mundo, mas existem também aqueles que os combatem e protegem a humanidade. Na edição 7 (setembro de 1964), no discurso de formatura dos X-Men, o professor Xavier afirma que a equipe deve usar seus poderes “pelo bem da humanidade”, e que os jovens mutantes devem manter suas identidades em segredo, "porque o mundo dos humanos comuns [ordinary humans] ainda não está pronto para aceitá-los".

X-Men nº 1 (setembro de 1963), texto de Stan Lee e desenhos de Jack Kirby (fonte)

Conforme, então, as palavras do próprio fundador do grupo, os X-Men lutam pela aceitação dos mutantes, mostrando aos humanos que não há nada a temer. E como os humanos “não estão prontos” para aceitar a existência dos (e a convivência com) mutantes, estes não devem acentuar aquilo que os torna diferentes, mas mostrar que são confiáveis, buscando se confundir com aquilo que as pessoas aceitam – no caso, super-heróis (anos depois, em 2004, o escritor Joss Whedon racionalizaria o que está apenas pressuposto aqui, colocando Ciclope para defender a perspectiva de que os X-Men devem ser uma equipe de super-heróis como as outras, para tentar angariar a confiança das pessoas).


No fundo, essa primeira proposta dos X-Men é uma integração com os humanos que passa pela sua assimilação. A diferença – assim como para Destrutor – não é vista com bons olhos, a despeito do discurso bem-intencionado. Certamente, advoga-se que os humanos devam aceitar os mutantes. Mas aceitar a despeito da diferença, e não por e com ela. A ideia de que somos iguais no nosso direito de ser diferentes – chave, por exemplo, para os movimentos negros e LGBT na segunda metade do século XX – não estava ainda no horizonte de possibilidades político dos X-Men. Pelo contrário, a igualdade (no caso, de tratamento) parece pressupor a assimilação em determinado padrão social e cultural – expresso na exortação de Xavier para que não se melindre as sensibilidades temerosas dos humanos –, sem a qual ela não pode se realizar.


Recordo, à propósito, do que o sociólogo cabo-verdeano Gabriel Fernandes fala a respeito dos dilemas da população do seu país sujeitada ao domínio colonial português, em meados do século XX. Tratando das pressões político-culturais para se integrar aos hábitos, costumes e práticas dos colonizadores, ele conta como os “nativos” se viam impelidos a aderir à cultura dominante como requisito básico para sua inclusão na sociedade colonial – conformando assim o dilema entre pertencer a um mundo cultural seu, mas subjugado, e um mundo alheio, mas valorizado.


E nem precisamos ir ao continente africano para observar os dilemas da perspectiva de integração apresentada por essa primeira versão dos X-Men (e por Alex Summers, anos depois). Basta pensar, por exemplo, em como certo discurso vulgarizado hoje em dia busca uma integração e aceitação de grupos historicamente discriminados através de uma retórica baseada na suposta universalização de uma dita “natureza humana”, escamoteando os elementos e características particulares que tornam esses grupos, justamente, vítimas de discriminação. Os exemplos são inúmeros; mas, nesses tempos de recrudescimento do senso comum conservador no Brasil, é suficiente lembrar das tentativas – risíveis, dado que simplórias, mas preocupantes, dada sua persistência no tempo – de negar o feminismo contrapondo-o a um nunca bem definido “humanismo”, ou negar a importância do “Dia da Consciência Negra” fazendo referência a uma suposta (e igualmente nada definida) “consciência humana”.


Pressuposto inescapável em toda essa perspectiva de integração é a necessidade de distinguir, no seio da “minoria” discriminada, entre aqueles/as que são passíveis de aceitação e aqueles/as que não o são – entre o gay “bem-comportado” e o “afeminado”, entre a mulher “do lar” e a “vadia”... ou entre os mutantes “do bem” e os “malignos”, representados, nessas primeiras histórias dos X-Men, sobretudo por Magneto. Mas não o Magneto que estamos acostumados. Não o sobrevivente dos campos de concentração nazista que se utiliza de todos os meios para impedir que atrocidade semelhante recaia sobre os mutantes. Não aquele situado no polo oposto ideológico do seu antigo amigo, Charles Xavier. Pois esse Magneto – talvez um dos personagens mais complexos e trágicos desse universo frequentemente unidimensional dos super-heróis – vai ser criação do roteirista Chris Claremont nos anos 1980. Ainda estamos distantes dele.


O Magneto que temos aqui, inimigo do grupo desde a primeira edição, é mais uma variante do padrão de super-vilão característico da época. Seu objetivo, conforme relata na edição 4 (março de 1964), é dominar o mundo e escravizar os humanos, considerados inferiores (é de Magneto a primeira referência aos mutantes como “homo superior”). Na perspectiva de Magneto (cuja equipe leva o nome pouco sutil de “Irmandade dos Mutantes Malignos”), os humanos temem o poder superior dos mutantes, e por isso os odeiam.


Concordo com Howe quando ele afirma que, se as histórias dos X-Men mostram a perspectiva de Stan Lee contrária à intolerância racial, a figura de Magneto em particular acaba mostrando o que ele considera os limites apropriados da reação à intolerância – pois Magneto, ao contrário dos X-Men, representa a assunção de uma identidade mutante, que significativamente acaba levando não à busca da tolerância, mas sim da dominação baseada no pressuposto de uma superioridade inata. No entanto, e justamente por isso, seria muito estranho e injusto repetir a afirmação corriqueira (endossada por Howe), de que esse professor Xavier e esse Magneto “alinhavam-se tão perfeitamente como metáforas de Martin Luther King e Malcolm X”. Se essa metáfora será válida em algum momento (e tenho certas dúvidas quanto a isso), certamente não é nas histórias dos anos 1960.


Magneto, inclusive, apesar de se constituir como a nêmeses dos X-Men desde a primeira edição, está ausente das histórias que, a meu ver, representam o ponto mais acabado da metáfora mutante nesse período. Refiro-me às histórias, contadas nas edições 14 a 16 (novembro de 1965 a janeiro de 1966), em que a equipe enfrenta os Sentinelas.


Nelas, o antropólogo Bolívar Trask se torna uma celebridade midiática ao afirmar, em entrevistas aos jornais, que “mutantes caminham no meio da humanidade escondidos e desconhecidos, apenas esperando o momento para atacar”. E que eles são “o inimigo mais mortal da humanidade, porque possuem o poder de conquistar a raça humana”. O grande medo estampado nos jornais (“Ameaça mutante!”, grita na capa um deles), a partir das palavras de Trask, é que os mutantes podem escravizar a humanidade, "trocando a nossa civilização pela deles".


X-Men nº 14 (novembro de 1965), texto de Stan Lee e desenhos de Jack Kirby e Jay Gavin (fonte)

O professor Xavier teme a caça aos mutantes que tais declarações podem provocar, e convoca um debate televisionado com Trask. Nessa ocasião, talvez a primeira vez em que o personagem assume a atitude pedagógica que estava pressuposta na equipe desde o início, Xavier explica para o público o que seriam mutantes e prega a tolerância (à moda humanitária e genérica de Stan Lee):


Antes de ceder a medos infundados, devemos primeiro considerar... o que é um mutante? Ele não é um monstro! Não é necessariamente uma ameaça! É simplesmente uma pessoa que nasceu com poderes ou habilidades diferentes dos humanos comuns! [...] Ninguém sabe o que causa as mutações! Seus próprios filhos podem ser mutantes! Vocês não podem deixar a ignorância, o rumor ou o medo irracional provocarem pânico!


Embora o público reaja com um misto de curiosidade e descrença à fala de Xavier, Trask interrompe o professor para apresentar ao mundo sua invenção – os Sentinelas, robôs gigantes programados para proteger a humanidade identificando, caçando e aprisionando mutantes ***.


Com essa ameaça, o tema da discriminação sugerido desde a estreia dos X-Men assume aqui, pela primeira vez, a forma de uma contraposição explícita de ideias, que buscam arregimentar as pessoas seja para uma perspectiva de tolerância e aceitação do outro, seja para o medo e o ódio infundados. Preconceitos, estes, que se materializam nos Sentinelas, vilões que se tornarão, para mim, a melhor representação da paranoia antimutante nas histórias futuras do grupo (é claro que, sendo os anos 1960, os robôs se rebelam e atacam seu próprio criador, raciocinando que o único modo de proteger a humanidade é assumindo o controle dela, e cabe aos X-Men salvar o dia).

X-Men nº 14 (novembro de 1965), texto de Stan Lee e desenhos de Jack Kirby e Jay Gavin (fonte)

É aqui que o discurso de aceitação de Xavier e dos X-Men pode ser visto na sua forma mais bem-intencionada, justamente porque contrapondo-se a um ideal de intolerância fundado na ignorância e no medo. Mas, se já nos anos 1960 essa perspectiva mostrava seus limites, por estar na contramão dos discursos identitários que orientavam a militância pelos direitos civis nos Estados Unidos, hoje, buscar uma integração baseada na negação (ou desconsideração) da diferença parece corroborar uma ordem social para a qual a retórica da “aceitação” e da “tolerância” nunca se materializa em direitos e políticas antidiscriminatórios – na medida em que acaba não necessariamente por criar empatia, solidariedade, aceitação, mas sim a submissão a um padrão (de homem, de mulher, de gay, de mutante), condição indispensável para a aceitação. É não perceber – como afirma Kitty Pryde em resposta ao discurso de Destrutor – que a diferença pode não só ser fonte de orgulho, como também esteio da luta contra preconceitos e discriminações.


Agora, se os X-Men se aproximam dessa última perspectiva, é algo que discutiremos em conversas futuras.

***

* Para uma análise interessante dessa repercussão, ver o texto de Andrew Wheeler, no (infelizmente) finado Comics Alliance: http://comicsalliance.com/uncanny-avengers-5-rick-remender-identity-politics-mutants/


** Na verdade, a própria equipe original dos X-Men, dos anos 1960, trazida para o presente para tentar influenciar nas ações do Ciclope “atual”. Melhor não entrar em detalhes...


*** Porque, aparentemente, nos cursos de Antropologia do Universo Marvel você aprende a construir robôs gigantes.

***


Este texto se baseou nas primeiras 19 edições da revista dos X-Men, lançadas originalmente entre setembro de 1963 e abril de 1966. No Brasil, essas histórias foram relançadas, mais recentemente, nos dois primeiros volumes da Biblioteca Histórica Marvel: Os X-Men (out. de 2007 e set. de 2008) e, algumas delas, na Coleção Histórica Marvel: Os X-Men n.º 1, 3 e 5 (junho/julho de 2014), todas pela Panini Comics.


Os discursos de Alex Summer e Kitty Pryde foram publicados, original e respectivamente, nas revistas Uncanny Avengers nº. 5 (maio de 2013) e All-New X-Men nº. 13 (agosto 2013). No Brasil, saíram primeiro nas revistas mensais Avante, Vingadores! nº. 5 (fevereiro de 2014) e X-Men n.º 7 (maio de 2014), e depois nos encadernados Fabulosos Vingadores: A Sombra Vermelha (setembro de 2015) e Novíssimos X-Men: Deslocados (agosto de 2016), todos pela Panini Comics. Veja aqui e aqui.


O livro de Sean Howe, “Marvel Comics: A história secreta”, foi publicado pela Editora Leya em 2013. E a reflexão de Gabriel Fernandes, mencionada acima, está presente no livro “Em busca da nação: notas para uma reinterpretação do Cabo Verde Crioulo”, lançado no Brasil pela Editoria da UFSC em 2006. Para uma discussão, acerca desse tema, mais referente ao Brasil, ver o livro do antropólogo Kabengele Munanga, “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra” (Editora Vozes, 1999).

Os X-Men originais reimaginados por John Byrne (fonte)

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