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- Alan Moore em Pílulas - A Balada de Halo Jones I: fragmentos de uma alegoria

Ato introdutório – As pílulas e as baladas

Imaginemos um futuro em que todo o Universo está conectado como se fosse uma grande zona de circulação e segregação de seres vivos. Imaginemos, com isso, que as tensões étnicas, culturais, raciais etc., fossem exploradas em nível intergaláctico. Ainda no exercício de imaginação pensemos, como era de se esperar, que as desigualdades que envolvem todas as tensões fossem críticas e bem visíveis. Tendo tudo isso como pano de fundo podemos, além do próprio projeto editorial da 2000 A.D. – entrarei nesse projeto mais à frente –, ler a narrativa de A Balada de Halo Jones como um bom exemplo, ainda que inicial, do recurso alegórico que estará presente nos roteiros de Alan Moore em boa parte de sua obra posterior, claro que em maior e menor grau a depender do trabalho. Isso significa que o escritor (Mago) já vinha tentando experimentar e estudar seus recursos narrativos desde muito tempo. A Balada de Halo Jones, que foi publicada entre 1984 e 1986 na Inglaterra, é uma obra que acompanha a jornada de Halo Jones como desculpa para explorar toda essa complexidade temática.


Mas o que seria uma balada? Uma balada, para além das músicas românticas com as quais sempre topamos por aí, é uma narrativa que é dividida em pequenas partes, geralmente formadas por poemas. Ela é a fragmentação, em termos narrativos, da epopeia grega adaptada às necessidades da literatura moderna e dos formatos editorais que surgiram logo depois. Assim, o que Alan Moore (roteiro) e Ian Gibson (arte) quiseram fazer com a personagem é uma epopeia fragmentada. Ela serve para tratar de vários temas e para desenvolver, direta e indiretamente, a personalidade da personagem ao longo do tempo. O que é mais interessante nesse recurso utilizado, que se encaixa perfeitamente na linha editorial da 2000AD e no típico modo de circulação de quadrinhos do Reino Unido, é como as três partes da história são diferentes, lidam como apelos diferentes e com a relação complicada entre autoria, público e editores. Para dar vazão a todas essas questões seguirei os livros da Balada em três textos, começando com esse, nos quais tentarei refletir sobre eles de forma separada.


E o que seria uma narrativa alegórica? Nos dicionários, encontramos alegoria como uma representação, ou seja, algo que é uma coisa mas, simbolicamente, quer ser outra. Isso significaria que uma alegoria estaria sempre oposta ao símbolo, que a alegoria seria uma desvirtuação do próprio símbolo. Acho que posso concordar com esse ponto fazendo apenas um adendo, incorporando as reflexões sobre alegoria de Walter Benjamin. De fato a alegoria desvirtua a representação, mas não quer representar uma outra coisa, ela quer fragmentar e ironizar o que ela já é. Isso significa que a alegoria é uma forma narrativa autônoma que mobiliza referências e lida com elas de forma livre. Abrir com uma seção chamada Alan Moore em pílulas é uma desculpa para acompanhar, do ponto de vista narrativo, como o autor faz da alegoria a sua marca fundamental de escrita e como os quadrinhos ajudaram ele a se consolidar nesse campo discursivo. Com isso, colocaremos o barbudo britânico em cheque para mostrar, nas suas próprias palavras, como a fragmentação e a ironia alegórica é a sua marca fundamental.


Ato de desenvolvimento I – contexto

Uma ótima biografia do autor, que acompanha as publicações de Alan Moore, é O mago das histórias que foi publicada pela Mythos. O autor da obra, Gary Spancer Millidge, acompanha a vida de Alan Moore a partir de suas obras e publicações. Estou usando as informações presentes no livro de Millidge e algumas entrevistas como referências. Os primeiros passos de Moore como quadrinista delineiam seu estilo de escrita, prevalecendo o conteúdo fragmentado e o tratamento político dos temas através das sátiras. Mesmo atingindo um relativo sucesso como cartunista, Moore decidiu se envolver diretamente com os quadrinhos. Como sua característica de desenho o impedia de desenhar diretamente as histórias, a técnica de pontilhismo demora bastante para ser feita, a melhor maneira de fazer isso era escrevendo roteiros para séries semanais para que outras pessoas desenhassem. Em 1977 uma revista havia sido lançada pela editora IPC, a revista chamava-se 2000 A.D. Seu conteúdo era todo voltado para ficção científica, feita por vários artistas do cenário underground como Dave Gibbons, Brian Bolland, Kevin O'neil, Mike McMahon e Ian Gibson. As publicações da revista eram encabeçadas pelo Judge Dredd, personagem icônico que ditava os trâmites da revista. Sátira, cinismo, violência extrema e politicamente ambígua, essas eram as características mais proeminentes da 2000AD


Alan Moore contatou Steve e pediu alguns conselhos sobre como apresentar um roteiro profissional a um editor de quadrinhos, também mandou um roteiro para Judge Dredd escrito por ele. No retorno, Steve Moore deu importantes conselhos, mostrando como fazer descrições mais claras e mais detalhadas tirando palavras ambíguas que confundissem o desenhista. Alan Moore, depois de fazer as alterações sugeridas por Steve, mandou o roteiro para a 2000AD. O editor, Ian Grant, respondeu encorajando Moore a continuar escrevendo, embora não tenha aceitado publicar o roteiro, visto que o roteirista de Judge Dredd já era um artista consagrado. A sugestão do editor foi para que ele fizesse um roteiro com histórias curtas, sem continuação, essa era a maneira da 2000AD. testar as habilidades de novos escritores, seguindo a tradição britânica na publicação de pequenas antologias A primeira de suas histórias publicadas foi em Future Shocks, logo depois várias outras se seguiram. Steve Moore foi trabalhar na Marvel UK e levou um roteiro de Alan Moore para uma história especial de Doctor Who, o roteiro foi aceito e, já nesse momento, o desenhista escolhido para ilustrar foi David Lloyd. Esse contexto de formação de um mercado de quadrinhos no Reino Unido, quase ao estilo estadunidense, é interessante pois colocou em contato todos os artistas que, de alguma forma, tinham participado da efervescente cena underground britânica. Moore ainda mantinha os desenhos como forma de completar a renda, pois não sabia se daria certo como roteirista, mas, gradativamente, ele largou os desenhos e se dedicou aos roteiros. Escrever essas histórias curtas deram muita experiência para Moore lidar com a nova atividade, assim como melhorar seus roteiros descrevendo os cenários de forma cada vez mais detalhada. Existe uma trajetória muito interessante para ser explorada, mas pularei alguns anos e obras para chegar em Halo Jones.


Nos primeiros anos de 1980 Moore se consolidou como um grande nome dentro do Reino Unido em várias frentes. A revista Warrior foi a sua casa mais profícua, sendo responsável pela publicação de V de vingança e Marvelman, nome de Miracleman no Reino Unido. Os trabalhos na Marvel UK também foram muito importantes e lançaram, muito a partir de Capitão Britânia, o nome do escritor barbudo para a grande indústria de quadrinhos. A fase britânica do escritor estava consolidada, mas o relacionamento com as editoras, não. Pretendo tratar disso em um outro momento, mas é importante deixar claro que a relação autores-editoras, principalmente na Marvel UK, era muito complicada. O único espaço doméstico que o autor ainda publicava em 1984 era a 2000AD.


Existem algumas controvérsias sobre a criação da personagem Halo Jones, principalmente pelo fato de ela ser a primeira protagonista feminina da 2000AD. Fruto da colaboração com Ian Gibson, que era um nome forte dentro da editora, A Balada de Halo Jones criou barulho, escutou barulho e o ignorou em vários momentos. Para que possamos pensar a obra com mais cuidado, concentrarei o argumento no livro da Balada. Isso significa que o objetivo dessa reflexão é tentar mapear, minimamente, a linguagem alegórica na obra e o que essa narrativa nos diz enquanto tratamento de temas e assuntos importantes para o mundo contemporâneo.


Ato de desenvolvimento II – os fragmentos

A Balada começa com uma página dupla que nos apresenta, de maneira panorâmica, O Aro, conurbação no meio do Oceano Atlântico nas proximidades da ilha de Manhattan. Aqui o efeito de impacto fica por conta de Ian Gibson que deixa o desenho explicativo e um pouco caótico ao mesmo tempo. A impressão que se tem no Aro é que a cidade vive sempre esse caos de imagens e formas, sempre em um jogo ambíguo de luz e sombras. O preto e branco, como em todos os quadrinhos britânicos, ou na maior parte deles, dá um tom especial à arte. A locutora da rádio, Swifty Frisko, descreve os primeiros acontecimentos do dia na enorme colônia marítima.


É interessante que, se formos pensar em cada um desses acontecimentos, desde as algas nos jardins de Pseudo Portugal até o acréscimo de mais três palavras no nome do proximano Procurador gelo enfaixado que se precipita barato através de uma manhã rabiscada balançando tornozelos necessários, percebemos como o Aro tem um cotidiano desordenado, populoso e, claro, tenso. Esse é o cenário no qual a Balada começa a desenvolver Halo Jones, personagem que não sabemos o passado mas que lança luz para sua jornada futura. É o lugar para o qual as pessoas sem emprego são levadas e assistidas por um programa de créditos. O Aro funciona como uma desculpa para o esquecimento, esses créditos são dados e as pessoas esquecidas, jogadas lá. O evento que puxa a apresentação do lugar, de Halos Jones e demais personagens, é a chegada da nave intergaláctica Clara Pandy. Já nessa pequena história somos apresentados ao cotidiano violento do Aro, como a multidão, diversa e hostil ao mesmo tempo, sempre acaba em uma briga generalizada. Claro, não poderia deixar de se notar, é um ambiente terrível para as mulheres, elas não podem mostrar nenhuma parte da sua pele para não “atiçar” o interesse e o assédio de homens de vários tipos. Um grupo de personagens que também é importante apontar são os Batidas Diferenciais. Basicamente, são pessoas que fizeram alguns implantes cerebrais para escutar uma batida rítmica em seus ouvidos, resultando em um comportamento mais agressivo e de gangue. Os Batidas, nas palavras das próprias personagens, são deprezumbis, ou seja, têm um comportamento mecânico e só agem de acordo com os seus objetivos de gangue.


Esse é o cenário inicial do Aro, ele é desenvolvido a partir de Halo Jones, Rodice, Brinna, Ludy e o cachorro mecânico Toby, que terá muitas surpresas ao longo da conclusão da obra. O ponto alto da narrativa do primeiro tomo se dá logo em seguida, quando Jones, Rodice e Toby precisam fazer compras e a situação ampla do Aro é revelado. É necessária uma verdadeira estratégia de sobrevivência para se chegar ao mercado. Primeiro pelo horário rigoroso dos transportes, que passam e se movimentam de acordo com o movimento da maré que está no entorno da mega colônia. Depois, o risco de brigas, incidentes e confusões é enorme, tendo setores mais perigosos que outros. A jornada das personagens é, relativamente, angustiante. É interessante como traço e texto funcionam bem no desenvolvimento da narrativa e passam bem o esforço de ambas. Talvez esse seja o grande trunfo do primeiro tomo de A Balada de Halo Jones, a narrativa e sua construção. Não estamos diante de recursos inovadores nem de técnicas mirabolantes, apenas presenciando o cotidiano caótico de um lugar esquecido pelos poderosos que tem como valor central a desigualdade. Quando o trio volta para casa, Brinna, a integrante mais velha da colocação onde moram Jones, Rodice e Ludy, foi assassinada. Esse evento desencadeia uma série de outros que é fundamental para a jornada de Jones.


Lembra dos Batidas, a gangue que aterroriza o Aro com seu comportamento e visual? Ludy, outra colega de colocação de Jones, entra para eles. Depois da morte de Brinna ela não suporta a pressão, a insegurança e tudo mais e entra para os deprezumbis como estratégia de segurança, de pertencimento. Em um primeiro momento esse fato não é tão profundo, mas coloca algumas questões interessantes sobre a formação dos Batidas e sobre os motivos para as pessoas entrarem e se submeterem aos implantes. A vida no Aro é sempre no limite, não necessariamente pela pobreza, mas sim pelo abandono. Tudo é muito incerto e instável, mesmo com as pessoas recebendo os créditos por estarem sem emprego.


A jornada de Halo Jones ganha outro caminho depois da “perda” de Ludy. Ela decide sair do Aro de todas as formas possíveis, ela pretende deixar tudo isso para trás. Halo Jones e Toby saem do Aro com um emprego na nave Clara Pandy, Rodice fica para trás com a promessa de encontrá-la dentro de um ano no planeta chamado Carlos Magno. É com essa promessa que o tomo um termina.


Ato final – as alegorias

O cotidiano do Aro nos faz pensar em muitas coisas. A primeira delas é na difícil situação das pessoas que lá vivem e na forma como essa mesma situação diz algo de muito concreto sobre o começo dos anos de 1980 no Reino Unido e em muitas partes do mundo. A era Thatcher funciona como um fantasma de pano de fundo. Em muitas entrevistas sobre a época, Alan Moore reafirma que os acontecimentos referentes ao governo da Dama de Ferro foram muito marcantes para ele, principalmente sua trajetória conturbada em relação aos valores representados pela líder do Partido Conservador. Esse tema inicial será a base, direta e indireta, para os trabalhos do começo dos anos de 1980. E Halo Jones? Como os temas explanados na obra fazem algum tipo de alusão ao momento do Reino Unido? A resposta está na alegoria.


O Aro tem vida própria, ele não representa absolutamente nada, é um conjunto de referências fragmentadas de modos de vida desconexos. Isso significa que as formas como os acontecimentos se desenvolvem fazem alusão apenas a eles mesmos, como uma alegoria que nasce no sentido barroco de mundo. Os temas envolvidos no tomo um de Halo Jones se juntam e se separam de acordo com o ritmo da narrativa, principalmente pautado nos quadros que se sobrepõem. Quando localizamos o contexto em que foi feita a obra, em algumas das questões presentes na Balada e na relação de Moore com a 2000AD, percebemos que essa maneira de desenvolver a saga da personagem construi-se para embaralhar as percepções sobre o que estava acontecendo na política inglesa e no meio editorial de quadrinhos do Reino Unido. A alegoria de Halo Jones, como toda alegoria em termos benjaminianos, constrói-se para depois se desfazer e se construir novamente. Veremos, depois, se ela se reconstrói.


Referências

O livro Alan Moore – O mago das histórias foi publicado no Brasil pela Mythos em 2012. Já A balada de Halo Jones, que também saiu pela Myhtos no Brasil, foi publicada em 2015. Para uma visão ampla sobre a noção de alegoria em Walter Benjamin, o livro de Kátia Muricy Alegorias da dialética é uma baita leitura.

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